XXIV Encontro Nacional do CONPEDI - UFS

POLÍTICA JUDICIÁRIA E ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA

Ronald Dworkin, importante filósofo do direito contemporâneo e professor catedrático da Universidade de New York, lançou em 2006, um texto chamado Is Democracy possible here?, discutindo uma série de questões, dentre as quais, terrorismo e Direitos Humanos, religião e dignidade, impostos e legitimação e, finalmente, o último artigo trata do tema das condições e possibilidades da Democracia em seu país.

Tendo por cenário de fundo as discussões que se davam entre liberais e conservadores envolvendo o governo Bush (filho), e as radicalizações de posturas ideologicamente postas de cada qual, Dworkin chama a atenção para o fato de que os interesses da comunidade estão sendo cada vez mais deixados de lado, até porque, em tais cenários, o interesse de ambos os principais partidos eleitorais vem sendo o de: how to win a majority, if only barely, in what was presumed to be a closely split and highly polarized electorate.

O efeito no eleitorado disto é que ele não sabe diferenciar com nitidez o que diferencia a proposta dos partidos e candidatos, uma vez que estão bombardeados por ações de comunicação, propaganda e publicidade voltadas à conquista do voto, independentemente de sua qualidade ou fundamento. É interessante como tais situações vão gerando, por sua vez, a univocidade identitária artificial e casuística do fenômeno político, fragilizando as distinções entre esquerda e direita – por exemplo, e colocando todos os atores da arena política como que compromissados com as mesmas demandas sociais (que também sofrem homogeneização forçada, e passam a ser de todos).

De certa forma este marasmo político foi fator importante na campanha vitoriosa de Barack Obama, na medida em que suas propostas de governo foram construídas sob plataformas distintivas do que até então vinha sendo feito, saindo do status quo vigente que Starr chama de centrismo brando e confuso (bland and muddled centrism).

Sem sombra de duvidas que Dworkin está certo ao afirmar que o tema dos Direitos Fundamentais hoje - mesmo nos EUA - carece de uma preocupação cívica importante, notadamente em face dos poderes instituídos, e mais especialmente no âmbito parlamentar, eis que os legisladores em regra tratam destes pontos com níveis de ambigüidade e falta de decisão muito grande, dizendo: as little as possible except in subliminal codes meant secretly to energize important groups.

Esquece-se desta forma que a verdade é a melhor referência que se pode ter para tratar disto tudo, todavia, na realidade americana, ela parece estar obsoleta, pelo fato de que: politicians never seek accuracy in describing their own records or their opponents'positions. Em verdade, o sistema político baseado na lógica do mercado, transforma-se em mais um produto de consumo caro e acessível somente aqueles que têm condições de financiá-lo. Tal financiamento, todavia, representa mais do que acesso, mas controle do sistema político, em outros termos, in politics money is the enemy not just of fairness but of real argument.

Os níveis de baixaria e agressões nas campanhas políticas contam com apelos midiáticos de espetáculo e diversão, transformando o processo eleitoral em programas de auditório divertidos, como se não tratassem de problemas da vida real (Reason isn't everything, after all, and emotion, of the kind American elections specialize in, has an important place in politics) .

Será que esta fragilidade do sistema parlamentar e representativo não é insuficiente para se pensar as fragilidades da Democracia? Não há outros modelos de participação política (mais direta e presentativa) que possam criar alternativas aos déficits sociais e institucionais da Democracia contemporânea?

Reconhece Dworkin que o critério majoritário da deliberação política não é o único nem o mais importante na experiência Ocidental, eis que, muitas vezes, a vontade das maiorias não garante resultados justos e mais eficientes ao interesse público (que não é só o majoritário), gerando vários níveis de injustiça às minorias – ou mesmo ignorando demandas de minorias. Quais os níveis de injustiça que uma Democracia suporta?

Daqui que um segundo modelo de Democracia opera com a idéia de que ela significa o governo de cidadãos que estão envolvidos como grandes parceiros numa empreitada política coletiva, no qual as decisões democráticas só o são na medida em que certas condições estão presentes para os fins de proteger o status e os interesses de cada cidadão.

No campo da pragmática e do cotidiano, o que se pode perceber é uma total falta de interesse pelos temas políticos e sociais, mesmo os relacionados a direitos civis são objeto de manejo muito mais para o atendimento de interesses privados do que públicos, e na perspectiva majoritária isto se agrava ainda mais, na medida em que as deliberações políticas só levam em conta quem participa e como participam no plano formal do processo político, ou seja, democracy is only about how political opinions are now distributed in the community, not how those opinions came to be formed.

Dworkin lembra que no modelo da democracia como conjunto de parceiros a perspectiva se diferencia, fundamentalmente porque opera com a lógica da mutua atenção e respeito enquanto essência desta matriz, sabendo que igualmente isto não faz parte das tradições e hábitos americanos, principalmente no cotidiano das pessoas e em suas relações com as outras. Registra o autor que: We do not treat someone with whom we disagree as a partner - we treat him as an enemy or at best as an obstacle - when we make no effort either to understand the force of his contrary views or to develop our own opinions in a way that makes them responsive to his.

Claro que em tempos de guerra e desconfianças mutuas as possibilidades de tratamento do outro com respeito se afigura escassa, o que não justifica a paralisia diante de situações que reclamam mudança estrutural e funcional, sob pena de comprometimento não somente das relações intersubjetivas, mas das próprias relações institucionais em face da Sociedade.

Em verdade, e é o próprio autor que diz isto, a concepção majoritária de democracia não leva em conta outras dimensões da moralidade política - resultando dai que uma decisão pode ser democrática sem ser justa -, enquanto que na perspectiva da democracia entre parceiros estão presentes outras considerações que meramente as processuais/formais, reclamando uma verdadeira teory of equal partnership, na qual se precisa consultar questões como justiça, igualdade e liberdade de todos os envolvidos. So on the parthership conception, democracy is a substantive, not a merely procedural ideal.

Dai que também não resolve ter-se um super-ativismo por parte da sociedade civil na direção de propugnar por uma democracia que venha a produzir decisões políticas substanciais de preferências seletivas majoritárias, porque novamente interesses contra-majoritarios podem ser violados de forma antidemocrática.

Em face também disto é que Dworkin identifica a migração da batalha sobre a natureza da democracia e sua operacionalidade à Suprema Corte, outorgando-se a si própria legitimidade para declarar atos de competência originária de outros poderes, isto em nome, fundamentalmente, de que a Constituição Americana limita os poderes das políticas majoritárias ao reconhecer direitos individuais - e de minorias - que não podem ser violados. Um pouco é nesta direção a critica no sentido de que os juízes estariam inventando novos direitos e colocando-os dentro da Constituição como forma de substituir as instituições representativas e democráticas por seus valores pessoais ou de quem representam.

Num caso específico envolvendo um jovem hospitalizado em estado terminal na Flórida, e vivendo somente com aparelhos, como conta Dworkin, sua família autorizou, com permissão judicial, o desligamento destes aparelhos porque isto evitaria maior sofrimento e a sua situação clínica e orgânica era irrecuperável. Imediatamente a reação do Congresso na sua maioria republicana foi feroz contra a decisão judicial, chegando inclusive a criar norma específica no sentido de que isto não poderia ocorrer até a decisão transitar em julgado. Alguns republicanos chegaram a prestar declarações ofensivas ao Poder Judiciário, dizendo estar ocorrendo verdadeira insubordinação em face do que o Parlamento decidira, pois: Once Congress had made its Will known, it was the duty of judges to execute that Will because Congress is elected by and represents the majority of the people.

O problema é que esta discussão está entrincheirada ainda em pequenos círculos de poder e de instituições já organizadas no mercado e nas relações sociais, não se podendo extrair daqui – ao menos para o Brasil e mesmo para os EUA – reflexos na opinião pública geral; ao contrário, pela reflexão de Dworkin, com o que concordo no ponto, a opinião pública sobre a natureza da democracia (que é o que está envolvido nesta discussão) depende muito mais do que os sujeitos que a representam acreditam serem os melhores meios e formas de conseguirem seus objetivos, sem envolver necessariamente preocupações com os impactos e efeitos que isto pode acarretar ao interesse público da comunidade.

Desta forma, a regra majoritária de deliberação política – divorciada de uma opinião pública qualificada por seus argumentos – não assegura maiores níveis de legitimação do que deliberações monocráticas decorrentes de processos de consulta ou discussão pública efetiva. Falha inclusive aqui o chamado Teorema de Condorcet, para o qual a soma quantitativa majoritária das escolhas individuais homogêneas maximiza a chance de que se chegará a resultados democráticos e satisfativos, pois se teria de perguntar: satisfativo para quem? No mínimo - e nem isto está garantido – para aquela maior parte quantitativa de indivíduos.

Mesmo a perspectiva de que a regra das escolhas e deliberações majoritárias venham a estabelecer vínculos políticos e institucionais (com parlamentares e partidos), independentemente da forma constitutiva das escolhas/deliberações, não garante tratamento isonômico às escolhas e pretensões contra-majoritárias. Como lembra Dworkin, os temas que envolvem políticas públicas apresentam não raro fundamentos morais de alta complexidade, not strategies about how to please most people.

Por outro lado, o autor americano toca em ponto nodal desta discussão que diz com os déficits democráticos efetivos do modelo da democracia representativa – ao menos historicamente -, na medida em que ela opera com o pressuposto equivocado de que há equilíbrios perenes nas bases da representação que a institui:

Political Power also very much differs because some of us are much richer than others, or more persuasive in discussion, or have more friends or a larger family, or live in states where the two great political parties are more evenly divided than where others live so that our votes are marginally more likely to make a real difference. These are all familiar reasons why the idea of equal political power is a myth.

E sem sobras de dúvidas trata-se de um mito este equilíbrio/igualdade política dos poderes públicos instituídos – quiçá uma idéia regulativa, a ser permanentemente buscada como forma de compromisso com tal modelo de Democracia. Isto é tão claro que hoje, no Brasil, uma discussão acadêmica e política importantíssima é a do chamado ativismo judicial em face do Legislativo e do Executivo, a ponto de matérias jornalísticas darem conta de que:

Congresso reage a atos do Judiciário. Parlamentares estão descontentes com o que dizem ser interferência do STF.

Insatisfeito com o resultado de julgamentos de temas políticos e desconfiado com as últimas propostas do Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso reagiu, na tentativa de conter a atuação do Judiciário. O deputado petista Nazareno Fonteles, do PI, propôs uma mudança na Constituição que daria ao Congresso poder para sustar atos normativos do poder Judiciário.

Além da nova proposta, deputados tiram das gavetas projetos que podem constranger o Judiciário. As mais recentes decisões do STF - de alterar a aplicação da Lei da Ficha Limpa e de definir qual suplente de deputado a Câmara deve dar posse - reacenderam a animosidade entre os dois poderes. A irritação aumentou com a proposta do presidente do STF, Cezar Peluso, de instituir um controle prévio de constitucionalidade das leis.

As reações do Congresso, do governo e do próprio STF fizeram Peluso recuar. Mas o atrito já estava formado. "Aos poucos, estão criando uma ditadura judiciária no país", disse Fonteles.

Em uma semana, o deputado recolheu quase 200 assinaturas e apresentou uma proposta de emenda constitucional para permitir ao Legislativo "sustar atos normativos dos outros poderes que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa". Atualmente, esse artigo (art. 49) permite a suspensão pelo Congresso de atos do Executivo. A alteração estende a permissão ao Judiciário. "Não podemos deixar o Supremo, com o seu ativismo, entrar na soberania popular exercida pelo Congresso. O Supremo está violando a cláusula de separação dos poderes, invadindo competência do Legislativo", argumentou Fonteles.

A chamada judicialização da política e a concentração de poderes nas mãos dos onze ministros do STF levaram o ex-juiz federal e ex-deputado Flávio Dino (PC do B-MA) a apresentar uma proposta de emenda constitucional acabando com o cargo vitalício dos ministros do Supremo. O projeto, de 2009, ainda está à espera de apreciação por parte da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Para Dino, a determinação do STF de aplicar a Ficha Limpa nas próximas eleições e as decisões sobre qual suplente deve dar posse no caso de afastamento do deputado titular reforçam a necessidade de evitar a submissão da política a uma aristocracia judiciária. – Na prática, o Supremo decidiu o resultado das eleições, substituindo a soberania popular – resume Dino.

Enquanto as propostas de emenda constitucional não entram na pauta, Fonteles conseguiu aprovar a realização de um seminário na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara para discutir a relação entre o Legislativo e o Judiciário. O evento está marcado para a próxima terça-feira.

Afigura-se como muito perigoso o tratamento desta questão nos termos apresentados pelo informe jornalístico, a despeito de que faça parte da estratégia político-parlamentar tensionar com a opinião pública determinados assuntos para ver como ela reage antes da tomada de medidas mais efetivas.

Em verdade, considerando ser a Democracia contemporânea uma tentativa de dar efetividade à idéia de self-government, na qual a soberania popular governa a si própria através de mecanismos de presentação e representação, é a inter-relação entre todos estes mecanismos, com o que Dworkin chama de equal concern, que deve pautar as interlocuções, deliberações e as políticas públicas de governo, isto fundado na premissa de que, though it would compromise my dignity to submit myself to the authority of others when I play no part in the their decisions, my dignity is not compromised when I do take part, as an equal partner, in those decisions. Daí a importância contra-majoritária do exercício do Poder.

Outro ponto polêmico nesta discussão – e bem abordado por Dworkin - diz com a compatibilidade, ou não, da existência de direitos individuais que não possam ser submetidos à vontade das maiorias, tal como a religião, por exemplo, isto porque uma compreensão mais cidadã da ordem constitucional republicana e democrática impõe o que o autor americano chama de partnership conception, a qual requires some guarantee that the majority will not impose its will in these matters.

Enfim, todos estes temas estão a envolver este Grupo de Trabalho do CONPEDI, em Política Judiciária e Administração da Justiça, notadamente quando a questão do protagonismo excessivo de alguns atores do espaço público se destacam - como é o caso do Poder Judiciário, e os textos publicados aqui vão nesta direção também.

Uma boa leitura a todos.

ISBN: 978-85-5505-062-6


Trabalhos publicados neste livro: