V ENCONTRO INTERNACIONAL DO CONPEDI MONTEVIDÉU – URUGUAI

PROCESSO PENAL E CONSTITUIÇÃO

A celeuma acerca de uma crise do sistema de combate à criminalidade instalou-se no Brasil praticamente em momento concomitante ao final da Ditadura de 64. Até então, o foco das atenções do imaginário político do País estava voltado para as violências perpetradas pelo regime militar e, consequentemente, para a criminalidade política, bem como para a questão relativa à redemocratização. Com o final do regime de exceção, as atenções das mais diversas classes que compunham setores críticos da sociedade brasileira voltaram seus olhos para inúmeros problemas que assolavam o País, dentre eles a criminalidade que, a partir de então, assumia até mesmo características sistêmico-organizacionais, por conta de uma convivência “instrutiva” entre criminosos comuns e militantes de esquerda, recebendo as primeiros lições de organização política dos segundos. A partir de meados dos anos oitenta o fenômeno criminal no Brasil teve uma curva de crescimento com jamais houvera na história brasileira, desencadeando reflexões e investigações que ocorrem de forma permanente até nossos dias.

Ao longo das últimas três décadas, construiu-se um considerável catálogo de causas para o fenômeno criminal. Por um lado, apontam-se, no âmbito da sociologia e da criminologia, fundamentalmente, como elementos causais desta crise, aqueles decorrentes da exclusão socioeconômica de boa parte da população, em função da não satisfação de direitos fundamentais de natureza material, tais como alimentação, saúde, educação, trabalho, habitação etc. Entretanto, por outro, não faltam críticos dos sistemas normativos que regulam a atuação estatal penal, considerando-os como um sério fator a ser ponderado como gerador desta crise, especialmente em função de uma suposta reprodução da sensação de impunidade no imaginário dos delinquentes que, por uma série de problemas nos sistemas processuais penais, não sofreriam a efetiva imposição de pena por parte do Estado. Cremos que razões parciais assistem a ambos os lados.

Poderíamos anotar uma bifurcação das críticas em relação ao sistema de combate à criminalidade que, com razoável procedência, revela uma crise de dupla face dos sistemas estatais de combate ao crime. Este duplo viés da crise deve ser compreendido a partir de uma perspectiva garantista-democrática de organização político-jurídica da sociedade e do Estado, mais especificamente a partir de todas as vicissitudes do sistema positivo de direitos fundamentais. Ao percebermos a Constituição Federal como barreira e estímulo em relação às possibilidades de atuação do Estado, e situando tal compreensão em relação ao fenômeno da criminalidade e dos sistemas de persecução penal, veremos que tanto podem ser atingidos os direitos fundamentais dos processados por autoria de fatos típicos, em razão de violações perpetradas por agentes estatais em relação aos princípios de garantia individual, quanto os direitos fundamentais das vítimas e do restante da população ao verem-se atingidas por ações delituosas, tanto no que se refere aos seus bens jurídicos individuais (vida, patrimônio, honra, etc.), quanto no que se relaciona a bens de natureza coletiva (segurança e incolumidade públicas, patrimônio).

De um lado, conservadores, identificados politicamente ao Movimento da Lei e da Ordem, ao Tolerância Zero ou outros movimentos político-criminais que se aproximam de posturas tendentes a uma atuação estatal penal máxima; de outro, os garantistas-liberais, que propugnam pela máxima redução do aparato de persecução penal do Estado.

Os conservadores deitam seus argumentos sobre uma reiterada impunidade que beneficia os réus, notadamente por conta da vigência de alguns institutos (v.g. procedimentos, recursos, alternativas processuais à aplicação da lei penal tais como a transação e a suspensão condicional do processo) que possibilitariam uma série de burlas à aplicação da lei penal, por facilitarem chicanas dentro do processo, situações que, segundo eles, têm levado a uma “institucionalização” da impunidade no Brasil. Nesse aspecto, um dos principais focos causais apontados para a escassez de eficácia da atuação persecutória criminal do Estado tem sido o sistema processual penal, particularmente em função de sua defasagem normativa, tendo-se em vista as demandas públicas de segurança num mundo completamente diverso daquele no qual foi construído o Código de Processo Penal. Ou seja, uma boa parte das soluções positivadas numa legislação de 1940 estaria completamente descontextualizada para demandas por segurança pública num mundo hipercomplexo, com profundas diferenças culturais, espaciais e temporais em relação à sociedade do tempo de geração do CPP.

Os liberais-garantistas, por sua vez, atacam os ranços inquisitivos do sistema e todas as possibilidades daí exsurgentes de violação a direitos fundamentais, especialmente de investigados ou réus.

O que precisa ser retido num primeiro momento é que a ideia de uma crise no sistema de administração da justiça penal tornou-se um tema reiterado em vários lugares, tais como a imprensa, os espaços forenses, a universidade. A elaboração da crítica por si só não se constitui num problema. Muito pelo contrário, pois a reflexão crítica estimula a constante reavaliação do sistema. Entretanto, o que é lamentável é que esse emaranhado de críticas permanece numa lâmina superficial da totalidade de um fenômeno muito mais profundo. Algumas graves questões ficaram esquecidas, obnubilando as verdadeiras razões de algumas deficiências democráticas da prestação jurisdicional penal. O que há de mais singular nestas atitudes críticas é que a muito poucos, dentre aqueles que se lamentam da ineficiência da administração da justiça penal, ocorra a natural indagação do “por quê”, que poderia dar-nos alguma resposta a respeito das causas reais desse fenômeno tão incomodativo.

Por conta da reiteração de críticas ao sistema processual penal e de uma conseqüente exasperação da crise, ensaiou-se um movimento de reformas a esta legislação de 1940, estando em estado bastante adiantado o projeto de lei que reformula o CPP. Entretanto, pelo teor do texto de tal projeto, oriundo da Câmara dos Deputados e já aprovado, com emendas, pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, parece que o diagnóstico não foi tão preciso quanto seria necessário, para que realmente tivéssemos uma mudança paradigmática em termos de prestação jurisdicional penal.

O ponto fundamental da crise do sistema de administração de justiça penal no Brasil, do qual decorre uma série de ramificações de problemas secundários estruturadores desta situação pelo qual passa o sistema processual penal brasileiro, é, na verdade, uma dificuldade decorrente da estreita relação existente historicamente entre modelos de direitos e paradigmas filosóficos que se projetaram sobre a concretude do fenômeno jurídico. É o dogmatismo que impede a visualização da verdadeira face da crise do sistema processual penal brasileiro, qual seja: apesar de estar aparentemente assentado em premissas democráticas e garantistas, guarda profundas possibilidades de concretização de um sistema inquisitivo e autoritário de produção de verdades processuais.

Outro ponto para encarar o problema de uma forma mais ampla. Por influência do racionalismo oriundo do século XVII, estruturado a partir de uma inversão metafísica (no sentido clássico de metafísica) proposta por Descartes, de uma trama de definições sugerida por Spinoza ou das sugestões acerca da melhor ordem possível de Leibniz, o direito iluminista tentou estruturar uma ideia de direito imune às transformações históricas. Foi uma consequência natural da projeção das concepções filosóficas e políticas modernas, especialmente materializadas no liberalismo e no iluminismo europeus, tentar transformar o direito numa ciência abstrata e formal, consequentemente invariável, com seu patrimônio conceitual imune às vicissitudes históricas. O efeito de tal influência da filosofia setecentista e oitocentista sobre o direito foi o estabelecimento de uma enorme distância entre o direito e a vida social e a prestação jurisdicional ficou limitada a uma mera declaração da vontade da lei.

Para encurtar essa distância entre o mundo da vida e o processo penal é, mais do que nunca, necessário desenvolvermos atividades investigativas que permitam a criação de novas engenhosidades jurídicas, de modo a atender às demandas de um processo penal constitucional e democraticamente adequado. Esse desiderato tem sido concretizado em grande medida pelo CONPEDI através de seus encontros nacionais e internacionais, propiciando espaços de socialização e discussão das pesquisas que têm sido realizadas contemporaneamente no Brasil e no exterior. Nesse V Encontro Internacional, realizado em Montevideo, República Oriental do Uruguai não foi diferente. No GT sobre Processo Penal e Constituição I os trabalhos apresentados pautaram pela atualidade dos temas apresentados e debatidos, conforme é possível constatar-se na seguinte relação dos trabalhos:

1. A experiência brasileira: o papel da audiência de custódia para as políticas públicas de segurança no Brasil, de Patrícia Borges Moura;

2. A mídia e sua influência nas decisões judiciais em matéria criminal à luz da Constituição Federal de 1988, de Beatriz Lima Nogueira e Diane Espíndola Freire Maia;

3. A relativização do princípio da presunção de inocência: um diálogo com os direitos e garantias fundamentais, de Deilton Ribeiro Brasil , Leandro José de Souza Martins;

4. Colaboração premiada enquanto modalidade lícita de confissão: análise de sua incidência no direito brasileiro e sul-americano, de Marcelo DAngelo Lara , José Flôr de Medeiros Júnior;

5. Sigilo das interceptações telefônicas: uma análise do caso lava-jato, de Antonio Eduardo Ramires Santoro e Nilo Cesar Martins Pompilio Da Hora.

A literatura jurídica que aqui apresentamos reveste-se da excelente qualidade acadêmica, e entre todas há um eixo comum: a ideia de um processo penal democrático. Por isso, cremos que os leitores irão regozijar-se com a leitura.

Prof. Dr. André Leonardo Copetti Santos - PPGD/URISAN

Prof. Dr. Santiago Garderes - UDELAR/Uruguai

ISBN: 978-85-5505-266-8