DIREITO, ARTE E LITERATURA
Se for verdade que, em comparação às tradições estadunidense e europeia, os estudos e pesquisas em Direito e Literatura ainda podem ser considerados uma novidade no Brasil, uma vez que se intensificaram somente na última década, é igualmente verdadeiro que, no Uruguai, praticamente não há investigações a respeito do tema, com exceção das recentes incursões do Prof. Dr. Luis Meliante Garcé, da Universidade de La Republica, que começa a se dedicar a esse diálogo interdisciplinar, desde a perspectiva da teoria crítica do Direito.
Daí a relevância deste volume, que ora apresentamos à comunidade acadêmica. Trata-se, com efeito, do primeiro livro “Direito, Arte e Literatura” resultante dos trabalhos submetidos, aprovados e apresentados no V Encontro Internacional do Conpedi, no qual se reuniram pesquisadores brasileiros e uruguaios para o intercâmbio de experiências acadêmicas sobre esse campo ainda inexplorado no Uruguai.
Nesta edição, o leitor encontrará um total de quatorze artigos, dos quais metade refere-se a Direito e Literatura, enquanto a outra metade versa sobre as relações com o Cinema, a Música e a Arte.
A primeira parte, dedicada aos estudos de Direito e Literatura, contém sete artigos, dos quais seis abordam a conhecida perspectiva do Direito na Literatura e apenas um deles se aventura na perspectiva do Direito como Literatura:
Ramiro Castro García, pesquisador uruguaio, adotando o modelo analítico proposto por Botero Bernal – segundo o qual se tomam os discursos jurídicos estabelecidos nas narrativas literárias como objeto do próprio direito –, investiga a relação e os limites entre Direito e Moral, a partir do romance “Lolita”, de Vladimir Nabokov, desde a perspectiva sustentada por Tony Honoré.
Mara Conceição Vieira de Oliveira e Cláudio Roberto Santo refletem acerca do adultério feminino, apontando a educação e a efetividade jurídica como alternativa de combate à violência contra a mulher. A partir do romance “O primo Basílio”, publicado em 1878 por Eça de Queirós, os autores questionam o que se alterou após 150 anos da promulgação do Código Civil de 1916, especialmente no que diz respeito ao julgamento da sociedade em relação à “traição”.
Rosália Maria Carvalho Mourão e Wirna Maria Alves Da Silva, apostando no Direito na Literatura, enfrentam o tema da “infância roubada”, resgatando o romance “Capitães da areia” de Jorge Amado, que narra a vida de um grupo de crianças e adolescentes em conflito com a lei, problematizando os atos infracionais por eles cometidos, as omissões por parte do Estado, da sociedade, da família e a evolução do direito penal da criança e do adolescente, do Código Mello Mattos até o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Carla Eugenia Caldas Barros e Luiz Manoel Andrade Meneses, utilizando os conceitos formulados por Giorgio Agamben, examinam o livro “Os corumbas”, escrito por Amando Fontes em 1933, que é considerado o primeiro romance operário brasileiro, por retratar o surgimento da indústria na cidade de Aracajú.
Daniela Ramos Marinho Gomes e Sandra Regina Vieira dos Santos abordam a necessidade de preservação das microempresas, especialmente em razão do tratamento a elas conferido pela Constituição de 1988. Para tanto, reconhecendo que a interpretação do Direito demanda a habilidade de ler o mundo sob diversas perspectivas, utilizam o clássico romance “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Marquez, enfatizando a chegada da Companhia das Bananeiras em Macondo, para demonstrar a função social das microempresas no cenário brasileiro.
Luciana Pessoa Nunes Santos e Maria do Socorro Rodrigues Coêlho tratam a questão do suicídio nas obras de Nelson Rodrigues, propondo a aliança entre a visão poética trazida pela literatura e a ótica realista do Direito. Ao analisar dos contos “O inferno” e “Delicado” e refletir sobre suas implicações jurídicas, as autoras destacam os diálogos de vanguarda que as narrativas de Nelson Rodrigues mantêm com o Direito de Família, funcionando como um catalisador para a construção de novos paradigmas.
Maurício Pedroso Flores busca apontar caminhos para uma visão narrativista do Supremo Tribunal Federal. Considerando as transformações institucionais ocorridas na Corte, questiona acerca da possível contribuição que o campo de estudos sobre Direito e Literatura pode oferecer à jurisdição. Como alternativa possível, revisa algumas abordagens de Direito como Literatura – mais especificamente do Direito como Narrativa – e ilustra uma compreensão narrativista de dois temas enfrentados pelo STF: discussões sobre constitucionalidade e desenho institucional do Estado.
A segunda parte, voltada aos estudos em Direito e Cinema, abrange quatro artigos, que problematizam questões jurídicas, sociais, filosóficas e políticas a partir de filmes e documentários:
Igor Assagra Rodrigues Barbosa e Sergio Nojiri aproveitam o filme de ficção científica “Ela” (2013) para levantar diversos questionamentos filosóficos, científicos e jurídicos, especialmente no que diz respeito à inteligência artificial. Com base nos aportes Turing, Dennet e Searle, desenvolvem argumentos favoráveis e contrários à possibilidade da criação de máquinas que pensem e atuem como humanos. No campo do Direito, no qual também se verifica o grande avanço das novas tecnologias, a ausência da emoção ainda constitui um elemento indispensável para que programas possam executar atividades desempenhadas exclusivamente por seres humanos.
Silvana Beline Tavares e Adriana Andrade Miranda também recorrem ao Cinema para abordar a questão do estupro a partir da desconstrução do paradigma dominante que se percebe no campo jurídico. Com base na análise do discurso e nas categorias de gênero, as autoras problematizam a naturalização da violência contra as mulheres vítimas de violência sexual representada no filme “Acusados”, de 1988.
Ana Paula Meda e Renato Bernardi examinam, sob a perspectiva interdisciplinar entre Direito, Antropologia, Sociologia e Geografia, a constituição das cidades em sua relação com a propriedade. Partindo do documentário “Dandara: enquanto morar for um privilégio, ocupar é um direito”, os autores buscam demonstrar que os assentamentos irregulares são uma realidade constante nas cidades e que a disputa pela posse e propriedade da terra pode ser solucionada por meio da mediação.
Camila Parmezan Olmedo propõe um estudo de Direito e Cinema, enfocando a questão da maioridade penal, com base no filme “Pixote, a Lei do Mais Fraco”, de Hector Babenco – inspirado no romance “Infância dos mortos”, de José Louzeiro –, sobre o tratamento jurídico conferido às crianças e adolescentes. Em sua análise, compara a legislação brasileira da década de 80, antes da Constituição Cidadã e do Estatuto da Criança e do Adolescente, e a legislação atual, além de apresentar um breve estudo sobre a maioridade penal na América Latina.
A terceira parte é composta de três artigos, sendo um deles utiliza-se da música, outro discute a verdade e a obra de arte e o último aborda o sistema de financiamento da cultura:
Patrícia Cristina Vasques de Souza Gorisch e Lilian Muniz Bakhos, inspiradas nas letras da música de Cartola, analisam o relatório de violência contra pessoas LGBTI no Brasil por transfobia, publicado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, referente ao período 2013/2014. Por meio das letras das canções “Disfarça e chora”, “Assim não dá”, “O mundo é um moinho” e “Brasil, terra adorada”, as autoras percorrem a via crucis da curta vida das transexuais e travestis, que dura em média apenas 35 anos.
Ataide José Mescolin Veloso, seguindo os passos da filosofia hermenêutica, discute a questão da verdade, deslocando-a dos pilares dicotômicos sobre os quais a Metafísica se alicerçou durante toda a sua trajetória, desde Platão até Nietzsche. Ao resgatar sua origem (aléthea), destaca que a experiência essencial da verdade se dá por força da desocultação, sendo, portanto, a obra de arte o campo no qual a verdade exsurge, não como representação do real, mas como combate entre o mundo e a terra.
Luciano Tonet e Jovina dÁvila Bordoni apresentam estudo comparativo entre o sistema de cultura nos federalismos dos Estados Unidos e do Brasil, apontando as contribuições que o modelo norte-americano pode oferecer ao brasileiro, a fim de que o financiamento privado, fundado no mecenato, possa ser corrigido e adequado à diretriz constitucional estabelecida pela EC nº 71/12. Os autores propõem um federalismo cultural cooperativo que, respeitando as diferenças e particularidades regionais, efetive os direitos culturais, sem a massificação, voltando-se à preservação da arte, memória e fluxo de saberes.
Como se vê, os trabalhos envolvem as mais diversas temáticas, perspectivas e formas de abordagem, o que revela o sucesso da primeira edição desse GT em um evento internacional do Conpedi e reforça ainda mais as inúmeras possibilidades que as interfaces entre Direito, Arte e Literatura oferecem à pesquisa jurídica.
Bom leitura!
Prof. Dr. André Karam Trindade - FG/BA
Prof. Dr. Rogério Luiz Nery da Silva - UNOESC
ISBN: 978-85-5505-246-0
Trabalhos publicados neste livro: