DIREITO, ARTE E LITERATURA
PREFÁCIO
Conta-se que os habitantes da ilha de Kós encomendaram a Praxíteles, talvez o maior artista da Grécia clássica, uma escultura da deusa Afrodite para o templo que lhe haviam dedicado. Praxíteles resolveu inovar: esculpiu a deusa nua, saindo de um banho. Os habitantes de Kós ficaram horrorizados, e rejeitaram a escultura (que foi comprada pelos habitantes da ilha de Knidos, onde o MGL – Movimento Grécia Livre – ainda não era suficientemente influente para evitar as mudanças que estavam em curso). Até então, era canônico na arte grega que homens se representavam nus e mulheres decorosamente vestidas. Mas não há cânon que dure muito, quando se trata de arte. Arte e literatura são o domínio do engenho e da invenção. Talvez isso nos ajude a pensar como o método da Literatura e da Crítica da Arte podem ser úteis para se pensar o direito. Desde o processo de sua positivação, ocorrido no século XIX, o direito passou a ser visto como obra humana e, como tal, sujeito às mesmas transformações por que passavam as sociedades, não necessariamente no mesmo ritmo dessas mudanças: às vezes seguiam-se-lhes com séculos de atraso, às vezes antecipavam-se-lhes em décadas.
É provável que o que haja de mais impressionante no campo de estudos sobre Direito e Literatura (e Direito e Arte) seja sua capacidade de antecipar o movimento que, ocorrendo no seio da sociedade, só mais tardiamente apresenta-se sob a forma normativa do direito: os trabalhos apresentados nessa nova edição do GT Direito, Arte e Literatura são um exercício de antecipação do futuro.
Nada melhor, portanto, do que iniciar este livro retornando a um passado cuja espírito era de anunciar e criar o futuro: o Modernismo. Mario Cesar da Silva inicia mostrando como uma concepção antropofágica (e radicalmente positivista – em sua crença na ciência e na razão) de direito já se apresentava na poligrafia de Oswald de Andrade (antecipando em mais de cinquenta anos os institutos do divórcio, da eutanásia e realizando a crítica do feudalismo e da propriedade improdutiva – que eram, afinal, a “pedra de toque” do edifício jurídico herdado do Império e que precisava ser abandonado e deixado para trás).
Na mesma época que o modernismo se desenvolvia no Brasil, a Europa passava pelo desencanto que caracterizava nos primeiros anos do século XX, e Franz Kafka apresentava uma versão derrotada do homem aniquilado pela máquina dos sistemas sociais. Ayrton Borges Machado e Lara Ferreira Lorenzoni discutem em seus artigos o momento em que a humanidade se descobria desamparada frente à falência dos projetos inerentes ao Estado moderno. Desiludido com o que descobria, o homem se inscrevia no mundo da memória interrompida, em que o futuro não se ligava mais ao passado.
A Literatura e a Arte, no entanto, sempre se apresentaram como antídoto contra a força opressora dos sistemas sobre o ser humano. Voltando ao modernismo brasileiro, todo seu poder de denúncia tem servido, ainda hoje, de inspiração para experiências transformadoras do direito. Esse é o caso da obra de Ariano Suassuna e de Jorge Amado. Esse também é o caso dos trabalhos de Gilmar Assis Siqueira, Teófilo Marcelo de Arêa Leão Jr. e Rogério Cangussu Dantas Cachini, que investigam o modelo de ressocialização do método APAC, de José Moisés Ribeiro, Amanda Taha Junqueira e José Sérgio Saraiva, que investigam o papel da arte no processo de ressocialização de adolescentes em conflito com a lei, e de Daniela Carvalho Almeida da Costa, Gabrielli Santos Lacerda da Silva e Cássio Roberto Uruga Oliveira, que investigam o papel da justiça restaurativa na ressocialização do menor ofensor.
Enquanto esses últimos trabalhos demonstram o papel educativo (em sentido lato) da arte e da literatura para a sociedade, é evidente que também desempenham um papel decisivo na formação de operadores jurídicos, que pode ser profundamente impactada pelo recurso a elas. Lincoln Mattos Magalhães e Jânio Pereira da Cunha relatam o uso de obras literárias (O Mercador de Veneza, de W. Shakespeare e O Processo, de Franz Kafka) na educação da sensibilidade jurídica dos alunos de Direito e Ana Paula Cardoso e Silva, Cláudia Aparecida Coimbra Alves e Frederico de Andrade Gabrich demonstram como o uso da Storytelling pode contribuir para desenvolver-se a habilidade de relatar fatos dos futuros profissionais jurídicos e reduzir o tempo que se utiliza nessa atividade em processos judiciais, aumentando a eficiência de sua comunicação.
Além da literatura, o GT contou com diversos trabalhos sobre outras artes. Mariane Beline Tavares explora questões de gênero a partir da obra da artista cubana Ana Mendieta, na qual, a partir da interação corpo-Terra, desenvolve-se uma dialética entre a existência e a resistência. Gabriel Aparecido Anizio Caldas, Gabriela Sroczynski Fontes e Maristela Carneiro analisam o filme A baleia (The Whale, 2022) para mostrar como preconceitos podem limitar a vida de suas vítimas a condições menos que humanas. Laíze Aires Alencar Ferreira e Thiago Augusto Galeão de Azevedo, recorrendo aos conceitos foucaultianos de biopolítica e biopoder mostram, analisam como a assimetria de poder no Brasil se relaciona ao tema do controle sobre grupos minoritários a partir da série de televisão The Boys. Andrei Domingos Fonseca e Jordy Arcadio Ramirez Trejo investigam o problema do marco temporal para as comunidades indígenas a partir da análise do documentário À Sombra do Delírio Verde (2011), que apresenta a comunidade indígena Guarani-Kaiowá, mostrando como o neoliberalismo é uma ameaça para as comunidades indígenas em geral. Debora Loosli Massarollo Otoboni e Henrique Lacerda investigam a ressignificação constante de memes pelo seu uso social e como esse processo se liga de forma metafórica ao processo de mudança da interpretação jurídica.
DIREITO E O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA: UM DIÁLOGO COM ALGUNS TRECHOS DAS OBRAS DE CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, de Fernanda Resende Severino e Lilian Mara Pinho, aponta para o tema das diferenças de sensibilidade dos juristas, artistas e autistas a partir de intersecções da obra de Drummond e de alguns votos de ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) nos Embargos de Divergência em Recurso Especial n° 1.889.704 de São Paulo.
O conjunto dos trabalhos apresentados, a profundidade e diversidade de métodos para análise e de autores pesquisados demonstram a sedimentação teórica acumulada pelos anos de discussão empreendida pelo GT, e revelam a aquisição de uma massa crítica sobre a matéria que raramente pode se encontrar fora do Brasil.
José Alexandre Ricciardi Sbizera (Faculdades Londrina)
Marcelo Campos Galuppo (UFMG/PUC Minas)
Silvana Beline Tavares (Universidade Federal de Goiás)
ISBN: 978-65-5648-748-9
Trabalhos publicados neste livro: